Arqueologias Efêmeras
Convém fazer um breve exercício imaginativo ao olhar para as estruturas de concreto e vigas metálicas repetidas em série nas fotos de Ivan Padovani. Que história seria possível contar a partir dessas construções, caso nos deparássemos com elas daqui a mil anos? Se os edifícios e planos de uma cidade são também documentos materiais de uma civilização, que tipo de testemunho revelariam esses esqueletos urbanos congelados no tempo? Estariam inacabados ou semidestruídos, como indicam as marcas da ferrugem metálica escorrida sobre o concreto? Sua vocação monumental seria apenas uma intenção sem muito propósito, ou teriam sido erguidos para de fato celebrar alguma coisa, terminando como monumentos involuntários em homenagem à coisa alguma?
Há um estado de suspensão permanente nessas imagens. Como portais do tempo, elas parecem anunciar o prelúdio de uma nova fase ainda desconhecida. O futuro é imponente, ambicioso, promissor, mas não chegou e não se sabe quando vem. Enquanto isso, segue-se em um presente que se repete na forma de monótonas vigas de concreto, uma ao lado da outra, sob o mesmo céu monocromático com pouquíssimas variações de cinza.
A busca por arqueologias efêmeras de uma cidade que produz suas memórias sem muito refletir sobre o que guarda para o futuro é uma parte importante no processo do artista. Nessa nova série, ele acompanhou, durante dois anos (2015-17), um conjunto de obras de infraestrutura por São Paulo que haviam sido interrompidas nesse período. As construções inacabadas, embora fotografadas em lugares diferentes, parecem ser quase sempre as mesmas – a eliminação de qualquer outro detalhe na composição das imagens reforça esse aspecto. A cidade nunca é vista como um todo, mas em partes desmembradas, em registros aparentemente genéricos de lugar nenhum, não fossem pelos indícios tão familiares que evocam a paisagem urbana da capital paulista.
A repetição e o desmembramento têm também uma relação importante com o título da série e da exposição. Em O Retorno do Real (1996), o autor americano Hal Foster desenvolve o conceito de “realismo traumático” baseado na noção de trauma da psicanálise lacaniana, que entende a repetição como uma única maneira de acessar um real que nunca aconteceu; uma tentativa de retirar todo e qualquer significado das imagens até esvaziá-las completamente.
Na sequência montada logo na primeira parede, Ivan apresenta uma mesma fotografia multiplicada por cinco. Por um instante, olhamos as marcas e camadas que escorrem pela lateral do bloco de concreto tentando encontrar uma mínima diferença entre cada imagem, algum detalhe que indique uma progressão ou continuidade naquela cena, que poderia se repetir infinitamente. A mesma dúvida é apresentada em outros momentos, mas de forma contrária: estruturas que parecem as mesmas, fotografadas de outros ângulos, quando, na realidade, são todas distintas, embora muito similares umas às outras.
“Não há praga urbana que seja tão devastadora quanto a Grande Praga da Monotonia”, escreveu Jane Jacobs em Death and Life of Great American Cities (1961), uma das principais críticas ao plano urbano ortodoxo do modernismo. A autora parte de Nova York como exemplo para combater projetos que queriam adequá-la aos moldes do que era entendido como uma “grande cidade” na época, com viadutos e vias expressas atravessando bairros inteiros. Muitas dessas ideias respigaram tardiamente em São Paulo, a partir dos anos 1970.
As imagens de Ivan Padovani carregam um pouco da monotonia descrita por Jacobs, em que a falta de diversidade urbana leva uma cidade a ruir soturnamente. E aí restam apenas seus monumentos involuntários, vistos por ninguém. (Nathalia Lavigne)
Texto crítico produzido pela curadora Nathalia Lavigne em virtude da exposição TRAUMA realizada na Zipper Galeria em janeiro de 2018.
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Ephemeral Archaeologies
It is important to briefly exercise our imagination when looking at the concrete structures and metallic beams that serially reappear in Ivan Padovani’s photographs. Which stores could we tell from these buildings if we came across them a thousand years from now? If a city’s constructions and layouts are also material documents of a civilization, what kind of testimony would these urban skeletons, frozen in time, reveal? Would they be unfinished or partly destroyed, as the rust marks running down the concrete indicate? Would their monumental nature be merely an intention without a purpose, or were they built to actually celebrate something, ending up as involuntary monuments to nothing?
There is a permanent state of suspension in these images. Like portals in time, they seem to announce the overture to a new, still unknown phase. The future is imposing, ambitious, promising, but it still hasn’t arrived and we do not know when it will come. Meanwhile, we remain in a present that repeats itself in the shape of boring concrete beams, side by side, under the same monochromatic sky with very few variations of the color gray.
Seeking ephemeral archaeologies in a city that produces its memories not reflecting upon what it will save for the future is an important part of the artist’s creative process. In this new series, he spent two years (2015-17) following a series of infrastructure works throughout São Paulo that had been suspended during that period. The unfinished developments, though photographed in different places, always look the same – removing all other details from the images’ composition enhances this aspect. The city is never seen in its entirety, but only as dismembered parts, in apparently generic records of nowhere, if not for the very familiar vestiges that denounce the urban landscape of São Paulo.
The repetition of this dismemberment is also related to the series and the exhibition title. In Return of the Real (1996), Hal Foster, an American art critic, developed the concept of “traumatic realism” based on Lacan’s notion of trauma – which understands repetition as the only way to access a reality that never was; an attempt to remove any and all meaning from images until they become completely empty.
In the sequence seen on the very first wall, Ivan presents the same image five-fold. For a moment, we see the scars and layers that drip down the concrete block trying to find the slightest difference between each image, any detail that reveals any sort of progression or continuity of the scene, which could be infinitely repeated. The same doubt is experienced in other times, but in the opposite manner: structures that look alike, photographed from different angles, that in reality are completely distinct, even though appearing to be very similar to the others.
“No special form of city blight is nearly so devastating as the Great Blight of Dullness”, Jane Jacobs wrote in The Death and Life of Great American Cities (1961), one of the greatest critiques to the modernist orthodox urban plan. The author uses New York as an example to fight projects that wanted to adjust the city to the molds of what was seen, at that time, as a “great city”, with bridges and expressways crossing through entire neighborhoods. Many of these ideas tardily contaminated São Paulo after the 1970’s.
Ivan Padovani’s images carry a little bit of the dullness that Jacobs described, in which the lack of urban diversity leads to the bleak collapse of a city. And so, only its involuntary monuments remain, seen by no one. (Nathalia Lavigne)